A autorregulação é, sem dúvida, o maior destaque. Porém, há outras inovações: as referentes às concessões, a segregação dos acidentes ferroviários, de acordo com a causa, e a possibilidade de os contratos gerarem uma receita alternativa para as ferrovias.
A regulamentação da Lei nº 14.273, de dezembro de 2021, a chamada Lei das Ferrovias, ocorreu em outubro último. A norma viabilizará investimentos privados na construção de novos trilhos, no aproveitamento de trechos ociosos e na prestação do serviço de transporte ferroviário, por meio do modelo de autorizações.
Na verdade, como afirma Fernando Paes, diretor-executivo da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários – ANTF, o principal foco da lei foi estabelecer um novo regime de autorização, uma nova forma de exploração do transporte ferroviário, tanto de cargas quanto de passageiros. “A lei também traz algumas inovações no que se refere às concessões, e aqui vale mencionar a possibilidade de uma concessionária, por meio de uma adaptação do contrato, tornar-se uma autorizatária — embora, para isso, ainda seja necessária uma regulamentação específica. De qualquer forma, a iniciativa foi muito bem recebida pelas concessionárias associadas à ANTF, já que a lei garante o reequilíbrio dos contratos caso haja uma concorrência assimétrica entre as autorizatárias e concessionárias ferroviárias.”
E há outras inovações do ponto de vista regulatório, começando pela autorregulação, continua Paes. Esse novo instituto para o setor ferroviário já é utilizado em outros setores de infraestrutura. “Podemos dizer que é uma inovação que pode se desenvolver muito bem para as ferrovias por meio de elaboração de normas técnicas, pelo próprio setor privado, pelas próprias operadoras. É importante lembrar que a autorregulação vale tanto para as autorizatárias quanto para as concessionárias que tiverem voluntariamente o desejo de aderir a essas normas técnicas. E a grande vantagem aqui é que há a obrigação de assegurar o cumprimento de todos os compromissos assumidos pelas concessionárias quando elas assinaram os seus contratos, ou quando os contratos foram prorrogados — como garantir os requisitos de segurança, a qualidade dos níveis de serviço e as ampliações de capacidade. A lei transfere para quem, no dia a dia, de fato atua nessas questões técnicas, como definições sobre dormentação de via permanente, ou sobre utilização de trilhos, ou ainda sobre as velocidades máximas mais adequadas, levando em conta cada ferrovia, cada situação. A definição a respeito dessas questões mais operacionais passa para o setor privado. A autorregulação é, sem dúvida, o que aparece em destaque nessa nova legislação.”
Ainda em relação às concessões, a nova lei trouxe uma regra importante de segregação dos acidentes ferroviários, de acordo com a causa desses acidentes, que é uma demanda já antiga do setor — e que também precisa ser regulamentada. “É claro que as concessionárias devem ser responsabilizadas por aquilo que elas derem causa, seja por ação, seja por omissão, mas as ferrovias não podem responder pelos acidentes que são comprovadamente causados por terceiros, por imprudência e por negligência, principalmente”, diz o diretor-executivo da ANTF.
Outra inovação relevante — que já existia e era praticada no setor aeroportuário — é a possibilidade de os contratos gerarem uma receita alternativa para as ferrovias com a utilização dos bens arrendados para finalidades que não são objeto da concessão. Por exemplo, arrendar uma área da sua faixa de domínio — não operacional, evidentemente — para outras atividades econômicas, desde a colocação de um outdoor até a criação de outros tipos de empreendimentos. A mudança faz com que esses contratos também possam extrapolar a vigência do contrato de concessão, o que viabiliza esses empreendimentos alternativos mais robustos e economicamente mais interessantes.
“A vedação existia no setor ferroviário, mas felizmente conseguimos acompanhar a mudança já ocorrida em relação aos aeroportos: mediante autorização do poder concedente, dos ministérios, agora você pode fazer um contrato com duração maior do que o prazo de concessão. Isso significa que o novo concessionário no futuro vai herdar o contrato já com esse eventual contrato acessório”, completa Paes.
Também comentando a regulamentação da Lei das Ferrovias, Felipe Estefam, sócio de Direito Administrativo, Infraestrutura e Regulatório do Cascione Advogados, salienta que ela visa incentivar investimentos privados na construção de novos trilhos, no aproveitamento de trechos ociosos e na prestação do serviço de transporte ferroviário.
Para tanto, são previstos mecanismos que dão maior dinamismo à participação do privado na renovação e ampliação da malha ferroviária. “Por exemplo, a legislação permite que as operadoras requeiram a qualquer tempo autorização à ANTT – Agência Nacional de Transportes Terrestres para gerir e operar as ferrovias, podendo cobrar tarifas com maior liberdade de preços. Ainda, a legislação incentiva que projetos já iniciados, mas ociosos, não implantados ou em processo de devolução por concessionários, sejam outorgados a operadoras mediante chamamento público da ANTT.”
Além do dinamismo – continua Esfefam –, o novo Marco estimula que novos investidores participem do setor ferroviário, tanto que foi vetado dispositivo que dava preferências às atuais concessionárias.
“O novo regime permite que o Ministério da Infraestrutura exija o compartilhamento da malha do operador autorizado, o que pode ser considerado um redutor de atratividade de investimentos. Porém, é cedo para se criticar a viabilidade econômica do compartilhamento no setor, ainda mais porque, nos setores de energia elétrica e de telecomunicação, o compartilhamento vem se mostrando um instrumento eficaz.”
Estefam, que também atua em processos judiciais, arbitrais e de mediação, especialmente em demandas envolvendo agências reguladoras e empresas estatais, completa dizendo que o mercado já deu respostas positivas ao novo modelo, pois cinco novas autorizações ferroviárias já foram outorgadas nos estados da Goiás, Bahia e Mato Grosso, para operação de novos trechos e instalações. Além disso, até setembro deste ano, já houve registro de mais de 80 pedidos de autorização da iniciativa privada, o que indica uma projeção de investimentos bilionários no setor.
Guilherme Nurchis, diretor da Empretec, uma tradicional fornecedora de equipamentos para construção e manutenção de ferrovias, também se mostra otimista com a regulamentação. “A Lei nº 14.273/21 permitirá a expansão da operação ferroviária através da reabilitação de ramais existentes, proporcionando capilarização do modal ferroviário e oferecimento de novos serviços. É uma grande notícia, pois aborda uma grave falha das concessões que tendem a focar na parte mais lucrativa e operacionalmente interessante da malha.” Pelo seu lado, Raul Souza, consultor de Segurança Empresarial da ICTS Security, uma empresa de consultoria e gerenciamento de operações em segurança, de origem israelense, também acredita que a Lei das Ferrovias facilitará investimentos privados na construção de ferrovias, no aproveitamento de trechos ociosos e contribuirá para o aumento e disponibilidade operacional, expandindo a malha ferroviária em operações logísticas. Com isso, diz Souza, retomará a mobilidade e auxiliará também no crescimento econômico mediante a geração de novos empregos.
Engenheiro com pós-doutorado em sustentabilidade e transportes pelo Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa (IGOT), além de presidente da FerroFrente – Frente Nacional pela Volta das Ferrovias, uma entidade sem fins lucrativos que tem como objetivo defender a volta dos trens de passageiros e a ampliação da malha ferroviária para o transporte de cargas no Brasil, José Manoel Ferreira Gonçalves é sucinto em sua análise desta nova lei: “ela tira do Estado a responsabilidade que o Estado tem. O Estado tem que ser o órgão orientador e planejador da política pública nessas ferrovias”.
É interessante lembrar que no modelo de concessão existente no país, antes da homologação do Marco Legal das Ferrovias, apenas o Governo Federal detinha autorização para construir novas ferrovias, através da empresa estatal Valec, que foi recentemente incorporada à EPL, criando a Infra S.A., que será responsável por fiscalizar projetos em andamento nos modelos anteriores (Fiol – Ferrovia de Integração Oeste-Leste e Fico – Ferrovia de Integração do Centro-Oeste), assim como futuros projetos advindos no país.
“A novidade está no fato de que o Marco Legal permitirá o desenvolvimento, sem grandes barreiras ou burocracias, da nossa infraestrutura de transporte ferroviária, pois permitirá, em vias gerais, que o empresário de mineração, de logística ou de qualquer outro setor da economia nacional, sentindo a necessidade de construir e/ou operar uma ferrovia para transporte de mercadorias próprias ou do seu interesse, apresente um projeto consistente e exequível para liberação da construção dessa malha ferroviária”, acrescenta Rafael Barros, diretor de Engenharia da RB Assessoria e Treinamento, uma empresa de serviços de engenharia e consultoria técnica.
Porém, continua ele, será necessário seguir uma série de regras e determinações do MInfra – Ministério da Infraestrutura (órgão regulador ferroviário) e da ANTT (órgão fiscalizador do transporte terrestre), antes de receber essa autorização, mas é perceptível que o caminho a ser percorrido se mostra mais curto e menos sinuoso, fazendo com que players e empresas tenham demonstrado seu interesse na construção de novas ferrovias.
Diretora executiva da TEMPO Operações industriais, fabricante de AMVs, peças e acessórios para via permanente, bem como voltada para a manutenção de vagões e locomotivas, Juliani Barbosa também é otimista e salienta que, muito esperado pelo modal ferroviário brasileiro, o Marco Ferroviário nasce com o propósito de melhorar e fomentar a utilização e a participação da ferrovia nacional. Faz parte de seus pilares flexibilizar a utilização deste modal para empresas privadas no segmento de transporte de cargas e passageiros, bem como todo o processo de infraestrutura ferroviária.
Por meio dos trilhos, entende-se que haverá players privados na exploração indireta, ou em regime público concedido através de processos licitatórios de concessão. Contudo, espera-se que o fomento do modal contribua para aumentar a concorrência, a competitividade e a diminuição dos custos de operação.
“Espera-se que, a partir deste Marco, poderes privados e públicos possam obter autorizações, diretas ou indiretas, para explorar malhas ferroviárias com contrato de outorga em vigor ou em processo de devolução ou desativação”, comenta Juliani.
O objetivo da proposta é criar oportunidades de investimentos ferroviários privados no país, com base em um modelo regulatório que prevê a autorização para exploração do serviço de transporte ferroviário, o que está de acordo com os termos do art. 21 da Constituição Federal, completa a diretora da TEMPO.
Há falhas na lei?
“Eu não diria que há propriamente falhas. No entanto, não só em relação à lei, mas ao programa federal de autorizações, e acho que isso vale para todo o setor de infraestrutura, a gente precisa pensar em como retomar, de algum modo, o investimento público, a participação do Governo Federal nesses projetos”, diz Paes, da ANTF.
No caso das ferrovias autorizadas, quando se pensa nos grandes projetos, aqueles com maiores extensões e grande capacidade de transporte, eles estão na casa de bilhões de reais e demoram anos para se tornarem operacionais — e, portanto, para terem geração de receita.
“Nada indica na história recente que esses projetos conseguem sair do papel sem uma participação efetiva do poder público. E como o Governo Federal deve estruturar melhor esse programa? Primeiro, é preciso pensar numa participação direta da União, com novos recursos, compartilhando riscos, e, principalmente, na fase inicial, quando há dificuldade de caixa, período em que, justamente, esses projetos não geram receita.”
Ainda sob a ótica do diretor-executivo da ANTF, é preciso pensar também em novas formas de financiamento de longo prazo, e que tenham participação também do governo nesse crédito, com taxas de juros adequadas, não necessariamente a volta da TJLP – Taxa de Juros de Longo Prazo.
É hora de voltar a pensar numa taxa de juros de longo prazo para projetos de infraestrutura, assim como em outras formas de financiamento, enfatiza Paes. É preciso destravar o projeto de lei das debêntures de infraestrutura no Senado Federal, que também representará um ganho, e estruturar um pouco melhor como se dão as garantias na tomada de crédito, e aí, tanto vale o crédito público, via BNDES, quanto o crédito de bancos privados.
Formas de garantia sempre foram um problema para o setor. É preciso que elas não sejam restritivas. E aí, pensando no “mundo” das autorizações, muitas empresas de pequeno porte, como já foi noticiado na imprensa, terão dificuldade de contrair os empréstimos necessários para tirar os projetos do papel. Então, isso reforça a necessidade de uma participação do governo e, também, de criação de outras formas de fomento para esses investimentos, como novas políticas de crédito e de garantias.
“Novamente, o que há não é uma falha da lei, mas a necessidade de um amadurecimento, de ajustes, para o setor avançar mais. É preciso trabalhar do ponto de vista da regulação para que ela torne interessante, por exemplo, a reutilização de um trecho brownfield – abandonado, ocioso ou subutilizado –, que pode ser desenvolvido. Talvez, nesse caso, pelo fato de não existir um investimento greenfield desde o princípio, do ponto de vista econômico existe uma viabilidade maior”, explica Paes.
Aqui o importante é entender como a regulação pode permitir e ajudar a utilização plena desses trechos, tanto na eventual hipótese de devolução por parte das concessionárias, quanto do chamamento público, de forma que esses trechos sejam reutilizados, agora pelo regime de autorização, continua o diretor-executivo da ANTF. “Projetos greenfield conseguirão se viabilizar ainda que sem a participação de recursos públicos? Talvez. É uma aposta, sem dúvida, mas acho que ela deve recair sobre os projetos menores — sobre as shortlines, linhas de menor distância que servem para conectar pontos próximos, mas importantes dentro da linha férrea.”
O diretor de Engenharia da RB Assessoria e Treinamento também não vê falhas na Lei das Ferrovias. “Porém, há muitos anos escutamos discussões sobre os modelos de concessões criados no país, gerando controvérsias nas interpretações e tendo pontos a favor e contra. Prefiro destacar a grande importância da criação deste Marco Legal das Ferrovias, que se assemelha muito ao modelo americano implantado pela Amtrak na década de 70, chamado de shortlines, no qual foram criados diversos pequenos ramais que cobrem quase todo os EUA e chegam ao Canadá (Montreal, Toronto e Vancouver), sedimentando a malha ferroviária no país, que hoje está com quase 300.000 km, segundo dados do The World Factbook (United States – The World Factbook), companhia governamental.
Essa vontade de investir novamente no modal ferroviário no país – prossegue Barros –, esquecido por quase 70 anos, desde a década de 50, quando houve a priorização do modal rodoviário, é de suma importância para o crescimento da economia, com desenvolvimento de novos mercados, aumento da geração de empregos nas obras que estão por vir e, claro, com aumento da concorrência entre concessionárias existentes (MRS, Rumo, VLI, etc.) e as autorizadas ferroviárias, podemos ter aí uma redução no custo dos fretes, o que ajudará a diminuir o custo logístico do Brasil, que está entre os mais altos do planeta.
“Eu não diria que faltou ser incluído algo, prefiro dizer que poderiam ter discutido uma melhor maneira de aumentar, obrigatoriamente, a malha ferroviária para transporte de passageiros, seja através de novas construções ou de recuperação de malhas ‘abandonadas’ ou com baixa operacionalidade, principalmente em grandes capitais, como Belo Horizonte, Brasília, Vitória e Cuiabá e cidades que possuem mais de 1,0 milhão de habitantes, como, por exemplo, Campinas, Manaus, Curitiba, São Luís, Goiânia e Belém. Sou um dos especialistas em infraestrutura que defende a redução da largura das faixas de domínio das novas ferrovias construídas no país – em média 80 metros de largura – ou que se mantenha essa largura, mas construam sempre linhas duplas, uma de carga e outra de passageiro, entre cidades que possuem potencial de transporte de passageiros. Por exemplo, a recém construída Ferrovia Norte Sul – FNS, no trecho que liga Açailândia, MA (112 mil hab.) até Anápolis, GO (386 mil hab.), passando por cidades como Imperatriz (250 mil hab.), Araguaína (186 mil hab.), Porto Nacional (53 mil hab.), Palmas (313 mil hab.), Uruaçu (42 mil hab.) e Goiânia (1,5 milhões hab.) (Veja mapa abaixo). Seria uma rota com grande potencial de transporte de passageiros, que merecia ter sido melhor estuda à época da elaboração do EVTEA – Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental”, completa o diretor de Engenharia na RB Assessoria e Treinamento.
Para Nurchis, da Empretec, quando o assunto são as “falhas” desta lei, ainda não foi desta vez que temos um texto abordando, de forma objetiva, o transporte de carga geral e de passageiros. Apesar das modalidades não estarem excluídas, não há um mecanismo específico e o mais importante: não há incentivos.
“Nós precisaríamos de uma empresa pública de planejamento na área ferroviária para construir um projeto com centros de concentração e de distribuição de cargas. Não fazer uma lei que autoriza apenas”, completa Gonçalves, da FERROFRENTE.
Souza, da ICTS Security, pelo seu lado, pontua que uma das falhas identificadas nesta lei envolve as possibilidades de modificações promovidas no artigo 3º da Lei de Desapropriações, prevendo a realização da desapropriação por meio de acordo, ou ajuizamento da ação judicial. “Isso cria possibilidade de que não apenas concessionários de serviços públicos, como também concessionários em geral – aqueles autorizados a explorar ferrovias – possam promover a desapropriação, impactando em planos urbanísticos”, adverte.
Finalizando esta questão, Juliani, da TEMPO, ressalta que as incertezas surgem sobre a capacidade das empresas que fizeram a solicitação em levar adiante todo o projeto. Por tratarem-se de obras de alto custo, este é um requisito desfavorável. “A transparência do compliance do governo será fundamental para controlar as animosidades.”
Ainda segundo a diretora executiva, algumas informações sobre dilatação de prazos de entrega das obras também são questionadas pelos especialistas em negócios ferroviários, visto que não há informações sobre multas ou punições referentes à não entrega do projeto. Teme-se que influências políticas possam interferir na legitimidade do processo.
Passageiros e cargas
Como já mencionado, ainda há questão de passageiros e carga geral. E fica a pergunta: os novos investimentos em ferrovias devem contemplá-los?
Paes, da ANTF, responde destacando que, por parte das concessionárias, há uma tendência evidente de investimentos cada vez maiores na carga geral. Quando se verifica os dados da ANTF e da ANTT sobre a carga geral e, principalmente, sobre o transporte de contêineres, esse crescimento fica muito claro: uma evolução de quase 14 mil por cento desde o início das concessões e com uma diversificação de produtos cada vez maior, de cargas que inclusive abastecem o mercado interno, industriais, alimentos, de higiene e muitos outras. Esse é o crescimento dos contêineres, resultado de muito investimento em tecnologia. O uso do double stack (vagão de pilha dupla) é e será cada vez maior. O projeto da MRS é muito interessante — nesse sentido de fazer crescer a carga geral. Uma aposta que a empresa fez e que o governo apoiou, com a prorrogação do contrato.
“Eu acredito que as autorizatárias, quando estruturadas, também poderão seguir esse caminho. É possível, pelos pedidos que já foram feitos, que tenhamos alguns projetos dedicados à carga geral. Mas eu ainda acho que a viabilidade deles será ainda maior pensando em cargas dedicadas. Tanto é que a maior parte dos projetos são de cargas dedicadas, como minério, grãos e celulose, por exemplo. Sobre passageiros. Bem, a gente sempre fala, e quem trabalha com transporte de passageiros sobre trilhos sabe muito bem disto, que se trata de uma política pública. No mundo inteiro, pelos estudos que a ANTF fez ou acompanhou, o transporte de passageiros exitoso se caracteriza como resultado uma política pública subsidiada, e dificilmente o setor privado sozinho conseguiria estruturar e tornar rentável esse tipo de serviço.”
Então – prossegue o diretor-executivo da ANTF –, o que deve ser fomentado, principalmente, é a reutilização de trechos ferroviários — aqueles que não vão ser mais utilizados para cargas, seja porque algumas ferrovias estão fazendo contornos em algumas cidades, seja porque alguns trechos simplesmente não têm mais demanda, já foram ou serão devolvidos. É preciso pensar e desenvolver estímulos para fomentar esses projetos com esforços da União e dos ministérios responsáveis junto com os estados e municípios interessados. Mais ainda, é preciso pensar como os projetos poderão ser organizados e estruturados sob o ponto de vista federativo, criando-se políticas públicas voltadas especificamente para o transporte de passageiros. “E aqui estamos falando de política pública ‘na veia’, na nossa avaliação”, completa Paes.
Já para Nurchis, da Empretec, não há na lei incentivos específicos para passageiros e carga geral. “Apesar de estarmos otimistas, o mercado tende a manter a sua abordagem atual.”
Também sem otimismo, Gonçalves, da FerroFrente, é cético: “Do volume de autorizações solicitadas, se saírem duas do papel para a realidade, vai ser muito. Então, a falha está nisso, é dizer para o empresário que ele define o que é importante do ponto de vista ferroviário para o Brasil. Isso não tem sentido, isso é péssimo, é uma irresponsabilidade”.
E Souza, da ICTS Security, acrescenta mais um dado: a Lei nº 14.273 já contempla o transporte de passageiros e cargas. “Art. 3º, Inciso XVIII – Serviços ferroviários: aqueles de transporte ferroviário de carga ou de passageiros oferecidos e prestados aos usuários”.
Barros, da RB Assessoria e Treinamento, por seu lado, também destaca que a Lei, em seu artigo 6º, explicita que a exploração de ferrovias se classifica por espécie, podendo ser de carga ou passageiro, ou seja, ela contempla ambos os modais.
Porém, o que precisa ser melhor debatido com os investidores privados é que se façam melhores estudos sobre a viabilidade econômica, e depois técnica, para implantação de empreendimentos voltados a passageiros, seja de transporte diário ou turismo, de forma que tenhamos investimentos salutares e que se mantenham ao longo dos anos, sem que ocorra o abandono ou devolução por parte do autorizado à União deste referido segmento implantado ou recuperado.
Outra necessidade existente no país, no entendimento do diretor de Engenharia da RB Assessoria e Treinamento, está na mudança cultural que envolve a quebra do paradigma quanto ao melhor, mais seguro e mais rápido meio de transporte a ser utilizado nas grandes cidades ou capitais, pois está enraizado na nossa cultura o uso do modal rodoviário, haja vista que vivemos num país onde se tem a média um carro para cada quatro habitantes, segundo dados do Denatran de 2020. Isso significa um grande favorecimento ao consumo de veículos automotores em cidades com elevada renda per capta, comprometendo a diminuição da poluição e a preservação do meio ambiente.
“Apenas como comparativo, quando mudamos de passageiro para o transporte de carga, identificamos um grande favorecimento ao modal rodoviário em detrimento do ferroviário: um vagão Hopper (transporte de soja) com capacidade de carga de 105 toneladas equivale a três carretas de 35 toneladas de carga, ou seja, um trem tipo ferroviário, como da Ferrovia Norte Sul, com duas locomotivas e 84 vagões de soja, equivale a tirar das rodovias um total de 252 carretas, ou seja, menos poluição e menor índice de acidentes, entre outros fatores positivos que o modal ferroviário nos traz”, completa Barros.
Para Juliani, da TEMPO, no que tange ao transporte de passageiros, “vimos que a participação é limitada e não necessariamente contemplada pela referida lei”.
Existem documentos em elaboração no Ministério da Infraestrutura para ampliar o uso dos trilhos neste sentido. A pasta está recebendo contribuições para só então apresentar relatório sobre o tema.
O discurso baseia-se em que a política pública nacional para mobilidade urbana tem o objetivo de desenvolver o sistema ferroviário de passageiros, a fim de proporcionar mais uma alternativa de transporte à população brasileira, propondo diretrizes para formulação de um modelo de negócio atrativo ao mercado, que potencialize os benefícios sociais e ambientais característicos do modo ferroviário, incentivando uma melhor utilização da malha ferroviária federal existente para o transporte ferroviário de passageiros.
Perspectivas
Obviamente, são inúmeras as perspectivas quanto aos efeitos desta Lei, ou deste Marco Regulatório, no desenvolvimento das ferrovias brasileiras – por exemplo, prazos dos investimentos, de onde viriam os recursos e para onde seriam direcionados, etc.?
Para o diretor de Engenharia da RB Assessoria e Treinamento, as expectativas são as melhores possíveis, “ainda mais porque venho falando aos alunos do meu curso de pós-graduação em Engenharia Ferroviária, assim como aos especialistas com quem converso, desde 2016, que o Brasil entraria em colapso se não houvesse nos próximos 25 anos investimentos massivos e pesados em infraestrutura ferroviária, fato este que vem acontecendo desde 2019 com alguns projetos antigos, que já estavam em andamento, sendo concluídos e concessionados (FNS e Fiol 1), assim como os novos projetos, sejam eles por iniciativa da União (Fico e Fiol 2) ou através do Marco Legal das Ferrovias, que possibilitará o crescimento da malha ferroviária nacional em mais de 12.000 km de novas ferrovias”.
Esse crescimento será fantástico para o país – continua Barros –, uma vez que os investimentos previstos englobam 15 unidades da federação, com capacidade elevada para geração de novos empregos através do investimento esperado de R$ 150 bilhões. Com relação ao prazo desses investimentos, assim como o Payback, garantia de retorno desse investimento, depende de muitos fatores, como elaboração de um ótimo estudo técnico de viabilidade para a construção, liberação de órgãos ambientais para construção das ferrovias, capacidade de aporte financeiro dos investidores durante os primeiros anos de construção, quais seriam as cargas a serem transportadas e seus valores agregados, sem falar na capacidade do corpo técnico dessas empresas em resolver problemas como interferências e conflitos que sempre existem ao longo da construção das ferrovias.
Em síntese, a oportunidade existe. Essa Lei permite que haja uma revolução no que tange à construção de novas ferrovias e recuperação de malhas outrora ociosas ou abandonadas, porém dependemos de liberações do poder público (pode ser demorada a liberação dessas Licenças), assertividade dos estudos elaborados (EVTEA – Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental, Projeto básico e Projeto executivo) e de uma mão de obra técnica e altamente qualificada para execução do projeto e sua efetiva construção, ou recuperação. Porém, sabemos que o investimento privado, seja nacional ou não, chega ao país em ótimo momento de recuperação econômica, e será capaz de trazer crescimento econômico e desenvolvimento para as cidades que circunscrevem o traçado ferroviário proposto de uma forma quase que vitalícia.
“No meu ponto de vista, com estudos feitos nos últimos 12 anos trabalhando com ferrovias federais como FNS, Fiol e Fico, acredito que a construção de uma ferrovia, seja ela de carga ou passageiro, dentro dos moldes atuais existentes, sem considerar a capacidade de investimento de cada empresa (mais dinheiro, mais equipamentos e mão de obra e menos tempo de execução), demore algo em torno de 18 meses para cada 100 km de linha, com custo médio em torno de R$ 12 milhões por km de linha, sendo que o Payback Médio, após a finalização da obra, gira em torno de 4 a 5 anos. Não é um investimento barato, não tem um retorno rápido, porém seus benefícios a longo prazo para a economia nacional são fantásticos, pois a manutenção ferroviária é vitalícia, a geração de empregos também, assim como sua elevada capacidade de volume de carga a um custo de frete muito mais barato que o modal rodoviário, permitem que o custo logístico do país possa ser reduzido”, completa o diretor de Engenharia na RB Assessoria e Treinamento.
Na ótica do consultor de Segurança Empresarial da ICTS Security, os investimentos viriam com a atuação do investidor privado no sistema ferroviário, tendo ganho significativo com disponibilidade operacional das ferrovias, expansão das malhas ferroviárias, dividindo suas prioridades de planejamento de pequeno, médio e longo prazo. Os recursos seriam direcionados para exploração do serviço, melhorando a estrutura de transportes brasileira com ênfase no modal ferroviário, tendo em vista o atendimento do mercado no transporte de commodities e de passageiros.
“Acreditamos que a lei tem como objetivo movimentar o modelo de concessão que, apesar de ser vitorioso nas últimas décadas, necessita de movimento e maior dinamismo para o modal refletir um benefício perceptível maior para a sociedade. Apenas quando o benefício for melhor percebido, teremos um interesse maior no setor e possíveis projetos legislativos futuros devido ao interesse renovado”, salienta, agora, Nurchis, da Empretec. Gonçalves, da FerroFrente, faz questão de destacar: “O Brasil não é um ‘paisinho’, é um país continental. Nós não podemos ter só preocupação de exportar commodities de açúcar, soja, milho e minério de ferro. Temos que planejar o Brasil para o futuro para vinte, trinta anos para que a gente possa ter a ferrovia transportando cargas da indústria brasileira”.
Juliani, da TEMPO, acredita que os chamamentos públicos para identificação de interessados na exploração de ferrovias ocorrerão quando houver ferrovias não implantadas, ociosas ou em processo de devolução ou desativação. O critério de julgamento será a maior oferta de pagamento pela outorga.
A figura dos investidores também foi prevista na nova lei. Estes serão classificados em Usuário Investidor e Investidor Associado.
Os chamados Usuários Investidores estabelecerão acordos e negócios com o operador ferroviário com o objetivo de aumentar a capacidade, aprimorar ou adaptar operacionalmente a infraestrutura ferroviária outorgada. É facultada a aplicação dos investimentos provenientes desta parceria no cumprimento das metas pactuadas com o regulador rodoviário e, no mais, os bens custeados com valores decorrentes do investimento incorporam-se ao patrimônio da operação ferroviária.
Os Investidores Associados, por sua vez, aplicarão recursos e firmarão projetos com concessionárias ferroviárias para construção, aprimoramento, adaptação, ampliação ou operação de instalações adjacentes, com vistas a viabilizar a prestação ou melhorar a rentabilidade de serviços associados à ferrovia.
Em ambos os casos, os operadores ferroviários poderão pactuar livremente o contrato com os investidores, devendo, apenas, comunicar o regulador sobre o contrato firmado, com exceção dos casos em que forem previstas obrigações que excedam os prazos e valores previstos no contrato de concessão, hipótese em que o regulador deverá anuir previamente com a operação. Além disso, os direitos e as obrigações previstos nestes contratos estendem-se aos seus sucessores, completa a diretora executiva da TEMPO.
“Ainda não dá para se falar em prazos. Temos três dezenas de contratos assinados, quase 100 autorizações solicitadas, mas creio que ainda é muito cedo para se falar em cronograma de obras, de prazo. Até porque ainda é preciso estruturar, sob o ponto de vista de financiamento e do compartilhamento de riscos, como esses projetos, principalmente os maiores, vão sair do papel”, finaliza Paes, da ANTF.
Modal efetivo
Finalizando, fica a questão: o que mais precisa ser feito para que a ferrovia brasileira seja validada como modal efetivo no transporte de cargas?
Segundo o diretor-executivo da ANTF, a ferrovia de cargas está mais do que validada como modal efetivo. O transporte ferroviário sobre trilhos cresceu muito nas últimas duas décadas no país: no período de concessões, de 1997 a 2021, ocorreu um aumento de 170% em TKU graças aos robustos investimentos realizados pelas concessionárias.
A ampla agenda de prorrogações dos contratos associada às novas licitações realizadas nos últimos anos, com projetos como os da FNS, Fio e Fico, esta última por meio do instrumento do investimento cruzado, “me faz crer que esse conjunto já vai garantir ao setor ferroviário um salto que é almejado há anos, que é o de vencer a barreira dos 20% de share na matriz de transportes de cargas do país e chegar aos 30%. Quando saírem do papel, as autorizações deverão somar a esse movimento de expansão do setor, que já está em curso”.
Também analisando o setor, Nurchis, da Empretec, lembra que há décadas o transporte de granéis é o grande trunfo do modelo de concessão atual. As quantidades transportadas e carga por eixo são referência no mundo todo, fatos que devemos reconhecer. Segundo o diretor, a Lei nº 14.273/21 promove uma mudança importante na forma de investimento no setor e pode impactar positivamente a oferta de produtos das operadoras ferroviárias. “É um passo na direção certa e devemos apreciar o movimento positivo neste momento de transição política.” Gonçalves, da FerroFrente, vai por outro caminho e lembra que é preciso recuperar a capacidade de produção industrial e, também, que “precisamos transportar, sobretudo, passageiros, coisa que a gente esqueceu, viagens de média e longa distância em cima de ferrovias praticamente não existem. Isso não tem cabimento”.
Já Souza, da ICTS Security, aponta que o governo, em conjunto com o investidor privado, deveria investir maciçamente no desenvolvimento da logística e de transportes no modal ferroviário, evitando as falhas do transporte de cargas rodoviário, tais como ineficiência, desperdício, lentidão e altos custos envolvidos.
“Precisamos pensar num conjunto de soluções estratégicas para o país, que envolva três modais de transporte – ferrovia, rodovia e portos –, de forma que sem um deles em condições adequadas, dificilmente teremos uma matriz de transporte equilibrada e que possa fazer crescer uma economia nacional de forma sustentável.
Barros, da RB Assessoria e Treinamento, diz, ainda, que é sabido que temos três males a serem combatidos no país quando se fala em infraestrutura de transporte deficiente: falta de malha ferroviária operacional, burocratização dos portos para embarque e desembarque de mercadorias e falta de mão de obra especializada. Todos esses três fatores, juntos, ajudam a justificar o elevado Custo Brasil existente nos transportes de carga.
“Em se tratando apenas de ferrovia, entendo que precisamos atuar nas seguintes frentes em prol do desenvolvimento e crescimento: investimentos na recuperação da malha ferroviária existente, tornando-a operacional e rentável, depois passamos para a construção de novas ferrovias, quanto mais quilômetros existentes, melhor, uma vez que estamos falando de um país com dimensões continentais que possui 8,5 milhões de quilômetros quadrados de área territorial, e, por último, e tão importante quanto, é a formação de maior e melhor mão de obra técnica e especializada para o setor ferroviário, desde os cursos técnicos de formação de maquinistas e seus auxiliares, por exemplo, até aqueles cursos de pós-graduação lato sensu que ajudam na melhoria da capacitação de profissionais para atuarem como gestores dos grandes projetos que poderão sair do papel nos próximos anos”, diz o diretor de Engenharia.
Tendo esses itens sido alcançados, continua o também coordenador do curso de pós-graduação em Engenharia Ferroviária, podemos esperar uma maior e melhor distribuição da nossa matriz de transporte de carga entre os modais ferrovia, rodovia e hidrovias (Portos), que permitirá uma redução do chamado Custo Brasil e, consequentemente, menor inflação e produtos com menor custo nas mãos dos brasileiros que, em paralelo, conviverão com a realidade da maior oportunidade de emprego, que gera elevação da renda per capta no país e permite aumento do consumo interno da população.
“Ou seja, em vias gerais, a ferrovia se desenvolvendo, teremos a oportunidade de ver um país crescer de forma contínua e estável, com elevação do PIB, diminuição da linha da pobreza, menor índice de desemprego e uma considerável melhoria da qualidade de vida dos cidadãos deste país.”
O momento é disruptivo e virtuoso para o transporte ferroviário. São esperadas melhorias em logística e inovação, também comemora Juliani, da TEMPO.
Com esse regime, os trechos ociosos ou em processo de devolução ou desativação poderão ser novamente utilizados. Trata-se de um regime que permite a empresas privadas proporem projetos privados à ANTT de forma menos burocrática num processo de simplificação do procedimento para prestar serviço de transporte que não envolva exploração da infraestrutura, através de simples inscrição em registro do regulador ferroviário.
Dessa maneira, a persona do Usuário Investidor e Investidor Associado, que poderão firmar contrato de investimento com o operador ferroviário para aumento de capacidade, aprimoramento ou adaptação operacional da infraestrutura ferroviária outorgada; e do Investidor Associado, que poderá investir para viabilizar a prestação ou melhorar a rentabilidade de serviços associados à ferrovia (não diretamente ligados ao transporte em si).
Tais investidores poderão firmar contratos com as concessionárias sem a necessidade de autorização prévia ou procedimento burocrático perante o órgão regulado, e assim surge a possibilidade de criação de uma entidade autorreguladora pelas administradoras ferroviárias, que estabelecerá padrões técnico-operacionais sem ingerência do Estado, limitando-se este a regular questões de segurança e situações pontuais. Para as atuais concessionárias, caso sejam afetadas pela entrada em operação de ferrovia autorizada, poderão migrar para o novo regime jurídico de autorização, sem prejuízo das obrigações contidas nos atuais contratos quanto a investimentos e manutenção do transporte de passageiros, completa a diretora executiva.