Seis em cada dez quilos de cargas são transportados por rodovias no país. Esse número, por si só, ajuda a explicar os impactos do desabastecimento no Brasil registrados com as manifestações dos caminhoneiros autônomos, desencadeadas no último dia 21.
Se a primeira metade do século passado foi marcada pelo desenvolvimento ferroviário –que hoje tem exatamente a mesma extensão que na década de 1920–, a partir dos anos 50/60 o país passou a ver o crescimento vertiginoso do sistema rodoviário.
Há no Brasil 213.591 quilômetros de malha rodoviária pavimentada, além de outros 1,36 milhão de quilômetros de vias não pavimentadas, que abrigam 61,1% dos transportes de cargas no país, muito à frente dos 20,7% das ferrovias ou dos demais 18,2% dos sistemas aquaviário, aéreo e dutoviário, somados, conforme dados da CNT (Confederação Nacional do Transporte).
É esse sistema que acolhe de 600 mil a 700 mil caminhoneiros autônomos no país que iniciaram as paralisações.
“A rodovia não é vilã por ser tão preferida. O problema é a falta de integração [entre modais] e planejamento. Elas não são adversárias, mas complementares”, afirmou Frederico Bussinger, consultor do Idelt (Instituto de Desenvolvimento, Logística, Transporte e Meio Ambiente) e ex-secretário dos Transportes de São Paulo.
Após vivenciar na primeira metade da década passada o fim do boom do sistema ferroviário, o país entrou no chamado ciclo rodoviarista a partir das décadas de 50/60, quando também começou a perder força na cabotagem.
As ferrovias brasileiras tinham, em 1922, 29 mil quilômetros de trilhos, usados no transporte de cargas e passageiros, mesma extensão atual, conforme a CNT –com uso basicamente para cargas. As hidrovias economicamente navegadas representam ainda menos, 22 mil quilômetros.
“Precisamos de mais estradas. E precisamos de muito mais ferrovias e hidrovias”, disse Bussinger, para quem o país, devido às suas dimensões, tem baixos indicadores em relação ao transporte.
Um estudo da CNT feito há quatro anos indica que, em valores atualizados, são necessários R$ 1,25 trilhão para as obras de transporte com o presente e o futuro do setor no país. No total, são 2.045 projetos de infraestrutura em aeroportos, ferrovias, rodovias e portos, cenário difícil de se imaginar quando constatados os baixos investimentos em infraestrutura.
Nos últimos dez anos, somados, foram investidos pelo governo federal, em valores nominais, R$ 123 bilhões, dos quais R$ 80,5 bilhões em rodovias.
E, se até 2014 os investimentos eram crescentes, com R$ 15,8 bilhões naquele ano, o montante não passou de R$ 12,3 bilhões, no máximo, nos anos seguintes.
Diretor-executivo da ANTF (Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários), Fernando Paes diz que o índice de cargas transportadas por trens é ainda menor que o indicado pela CNT –15%–, “modesto para um país de dimensões continentais como o Brasil”.
Para ele, em função das grandes distâncias que separam o campo dos portos, as commodities agrícolas têm “ampla vocação” para serem transportadas por trilhos. “Contudo, uma parte considerável das cargas, como a soja, principal produto de exportação do país, ainda é transportada pelo modal rodoviário até o porto de Santos. Ou seja, mesmo que o agronegócio estivesse estagnado, o que não ocorre, ao contrário, já haveria espaço expressivo para o modal ferroviário ampliar a sua participação.”
RETOMADA
Segundo Bussinger, o país passou a reverter o processo de decadência das ferrovias a partir das concessões ocorridas nos anos 90, assim como a cabotagem também tem crescido.
O crescimento é confirmado pelo diretor da ANTF. Nos 21 anos de concessão, as ferrovias ampliaram em mais de 170% a produção ferroviária e, com isso, em 2017 alcançou o maior valor da sua série histórica, com média anual de crescimento de 5,16%. Nos próximos cinco anos, devem ser investidos mais de R$ 25 bilhões no setor.
“Os números mostram a indiscutível eficiência, a crescente produtividade do setor e a necessidade da prorrogação antecipada dos contratos de concessão, ora em curso, para que as ferrovias façam novos e robustos investimentos e, com eles, continuem a crescer.”
ENTRAVES E CUSTOS
O sistema rodoviário também leva vantagem, na avaliação de especialistas, por ser quase “autossuficiente”, enquanto os outros meios dependem de pelo menos um segundo modal. Por isso, avaliam ser necessário planejamento e gestão integrada, o que não ocorre.
“Fica sempre no discurso, nos planos, nas palmas, enchendo Powerpoint, enquanto locais que poderiam abrigar terminais ferroviários vão sendo ocupados por outras coisas”, disse Bussinger.
Bruno Batista, diretor-executivo da CNT, disse, porém, que o transporte rodoviário depende muito da política de preços da Petrobras, que tem de ser revista –é o principal motivo das manifestações de caminhoneiros no país.
“A inflação de janeiro a abril foi de 0,92%, enquanto o diesel subiu 8,1%, quase 9 vezes acima da inflação. O preço de bomba no Brasil é mais caro que México, Rússia, EUA. É 15% mais caro que nos EUA, que têm renda média seis vezes maior que a brasileira”, disse.
Ciente desse cenário de dependência das rodovias, entidades como Abcam (Associação Brasileira de Caminhoneiros), uma das organizadoras das manifestações, sabem ter um espólio nas mãos na disputa que travaram com o governo federal.
“Estamos num país rodoviarista”, afirmou José da Fonseca Lopes, presidente da associação.
Fonte: Folha de S. Paulo