Quando se fala em cidades inteligentes, o imaginário coletivo tende a recorrer a tecnologias sofisticadas: sensores que controlam o trânsito em tempo real, postes conectados à internet, dados fluindo entre sistemas públicos e privados. Mas, na prática, o que realmente define a inteligência de uma cidade não está nos seus painéis digitais, e sim em algo muito mais básico – e negligenciado: como ela lida com a última milha.
Essa expressão, importada da logística e do transporte, refere-se ao trecho final de uma entrega ou deslocamento, geralmente o mais caro, mais poluente e menos eficiente de todo o percurso. Não por acaso, é nele que se acumulam os maiores gargalos da vida urbana contemporânea: caminhões parados em fila dupla, motociclistas se arriscando em calçadas, ônibus vazios circulando fora dos grandes eixos e cidadãos desconectados do tecido urbano.

Recentemente, duas grandes cidades americanas lançaram iniciativas que merecem atenção global. A primeira delas foi Nova York que, em abril, implementou os primeiros “micro-hubs” de entrega no bairro da Upper West Side. A ideia foi criar pontos de transbordo onde grandes transportadoras descarregam mercadorias que serão distribuídas localmente por bicicletas elétricas ou veículos leves de emissão zero. O projeto faz parte da iniciativa “Smart Curbs”, que busca, de forma deliberada, transformar vagas de estacionamento em áreas logísticas inteligentes.
Mas o que há de mais inovador nesse projeto não é a tecnologia, e sim o reposicionamento político do espaço urbano. Nova York está dizendo, com clareza, que o asfalto não pertence exclusivamente aos carros. Ao estruturar a última milha como parte da política pública de mobilidade e meio ambiente, a cidade desloca o eixo da inteligência urbana do digital para o estrutural: reorganizar o uso da cidade com base em dados, sim, mas com objetivos claros de equidade e sustentabilidade.
Atlanta e o “Uber público” como antídoto à exclusão
No extremo oposto do mapa dos Estados Unidos, Atlanta apresentou uma abordagem complementar: o projeto MARTA Reach, que combinou o transporte coletivo tradicional com um serviço de vans sob demanda, operadas em parceria com startups locais. A lógica é simples: resolver os “vazios urbanos” aonde o ônibus ou metrô não chegam – especialmente em bairros periféricos.
A provocação aqui é clara: não basta ter linhas de ônibus ou trens de qualidade. A cidade precisa conectar as pessoas à rede. Caso contrário, o transporte público continuará sendo um privilégio de quem mora nos eixos centrais – e uma frustração para quem está fora do mapa.
Enquanto isso, o Brasil parece travado em uma fase anterior do debate. A explosão do e-commerce durante a pandemia agravou o caos logístico nos grandes centros, mas nenhuma capital brasileira apresentou, até agora, um plano sistêmico para a última milha.
O Brasil possui todas as condições para inovar nesse campo: centros urbanos densos, grande penetração de smartphones, ampla frota de veículos leves e um ecossistema de startups logísticas. O que falta é decisão política para regulamentar o uso do espaço urbano com visão estratégica.
A lógica da eficiência não pode continuar atropelando a lógica da equidade. O que Nova York e Atlanta demonstram é que, quando a cidade assume a última milha como um desafio coletivo – e não apenas privado –, ela avança na direção de um urbanismo mais justo e inteligente.









