
Mesmo não sendo ‘especialista em política externa’, em novembro do ano passado arvorei-me ao direito de escrever um artigo com o seguinte título: “O Brasil, o mundo e os EUA de Trump” (https://logweb.com.br/colunas/o-brasil-o-mundo-e-os-eua-de-trump/).
Entre outras conclusões, para mim estava claro que o governo de Donald Trump poderia criar impactos importantes e significativos na economia e na política de todo o mundo. Comentei, inclusive, que “dólar e juros mais altos” são esperados, “caso sejam implantadas políticas protecionistas e barreiras alfandegárias”.
Salientei, ainda, que “América First” ou “Make America Great Again” eram slogans que não só significavam dar prioridade aos assuntos internos dos americanos como também isentá-los dos problemas e das responsabilidades mundiais. Dar pouca importância aos organismos internacionais (1) e trabalhar ‘contra’ o multilateralismo, caracterizavam, de fato, o pensamento de Trump. Em minha opinião, um grave retrocesso.
Já em março deste ano, ao escrever um novo artigo (“Extremismo ideológico e divergências históricas profundas inviabilizam a construção de uma nova ordem internacional” – https://logweb.com.br/colunas/extremismo-ideologico-e-divergencias-historicas-profundas-inviabilizam-a-construcao-de-uma-nova-ordem-internacional/), procurei enfatizar o que muitos de nós já sabíamos: além de vivermos uma era de incertezas, e tendo como agravante “um forte e constante crescimento da extrema-direita”, temos, também, “o surgimento de lideranças ‘complicadas’, para dizer o mínimo, que geram enormes impactos nas estruturas e organizações existentes. O maior exemplo, o presidente norte-americano Donald Trump.
Com atitudes radicalmente “contrárias aos valores democráticos”, a receita trumpista, além de ser ruim sob quaisquer pontos de vista, desrespeita “quaisquer outros interesses a não ser os próprios”. E próprios quer dizer, dele, Trump. E o pior é que mesmo considerando uma queda paulatina ao longo dos últimos tempos, há que se considerar que em menos de quatro meses de governo, o senhor Donald Trump conseguiu realizar o impensável: tornar os EUA um país muito menos confiável do que já foi em outras épocas.
Não à toa uma grande maioria de executivos e empresários mundiais, inclusive norte-americanos, compreendeu que as providências do presidente norte-americano, mais notadamente a ‘guerra tributária’, elaborada sem quaisquer critérios mínimos de racionalidade, tem gerado uma instabilidade geopolítica de proporções inimagináveis e uma grande ameaça à economia global. Fácil concluir que esses aumentos de tarifas, unilaterais e sem qualquer tipo de negociação, além de diversas outras ‘maldades’ populistas adotadas, somente estimulam o autoritarismo e o nacionalismo exagerado. Aliás, os nacionalistas exagerados, como aqui está colocado, não somente são autoritários, como combatem qualquer iniciativa que estimule a existência de Estados soberanos e que persigam uma convivência mais igualitária.
E não somente para o curto prazo, pois se é verdade que a globalização, como todos nós a conhecemos, trouxe benefícios à maioria dos países em todo o mundo, inclusive e, principalmente, aos próprios EUA, posto que a economia e as atividades produtivas muito mais integradas proporcionaram estabilidade e crescimento econômico, mantiveram a inflação sob controle e geraram aumento da eficiência e da produtividade, notadamente do trabalho, com consequente diminuição dos custos de produção. Realizar uma ‘guerra comercial e tributária’ que venha ‘desorganizar’ tudo o que até aqui se fez não parece a melhor das providências. A menos, como escrevi em artigo aqui já mencionado, que se queira, através da geração do caos e de uma forte recessão, implantar uma “nova ordem mundial” onde agressões à soberania dos países e intervenções militares sejam colocadas como práticas aceitáveis. Um editorial do Estadão (“Trump e o Grande Salto para Trás” (2)), ilustra um pouco o que aqui estou escrevendo.
Mas, os prejuízos não param por aí. O equívoco das políticas de Trump está na sua total desatualização. Não se pode ignorar que o processo produtivo mundial atual, totalmente integrado via processo de globalização, conta para cada produto produzido ou serviço prestado com a contribuição e insumos de todas as partes do mundo (ambiente global de produção), sendo que algumas das consequências imediatas foram, além da diminuição de custos, a melhoria dos processos produtivos. Trazer as indústrias de volta para os EUA e/ou construir novas cadeias logísticas e/ou adaptar a infraestrutura correspondente, além de custoso e de demandar muito tempo, dependem, e muito, das decisões empresariais.
“A interdependência não é mais nossa escolha. É nossa condição. Nossa única escolha é forjar interdependências saudáveis e ascender juntos, ou manter interdependências doentias e despencar juntos”, escreveu Thomas L. Fridman (3),
Mas é evidente, até porque não se sabe o que ainda poderá ser ‘criado’ pelo presidente Donald Trump, que os impactos das medidas adotadas pelo governo norte-americano, bem como as ‘respostas’ dadas pela China e parte da sociedade internacional, bagunçaram de forma definitiva a economia e o comércio mundiais, e um novo ordenamento internacional precisará ser construído. Sem jamais, acredito, voltar àquilo que já se havia conquistado ao longo dos anos pós 2ª Guerra, principalmente se considerarmos que as quebras de confiança e de credibilidade não se reconstroem no curto prazo.
Recente pesquisa feita pela McKinsey (“Perspectivas das condições econômicas” – março de 2025), indica que 68% dos entrevistados acreditam na recessão como o cenário mais provável, ainda este ano, posto que o clima de incerteza – aumentada à cada nova notícia – tem diminuído a confiança do consumidor em relação ao futuro. O sentimento é cada vez mais negativo.
O economista José R. M. de Barros, no Estadão do dia 6 pp (“O mundo caiu e será mais arriscado”) não tem dúvida: “A precariedade das medidas (de Trump), o evidente improviso da decisão, a possibilidade concreta de retaliações comerciais, como a que prontamente fez a China, e a gigantesca queima de credibilidade na política americana trarão queda no crescimento global”. Sem dúvida, esse será o resultado no curto prazo. Mas, continuou Mendonça de Barros, “foi detonado um processo de redefinição geopolítica dos principais participantes da economia global, cujo resultado é impossível ser conhecido hoje”.
Quanto a isso, o economista e jornalista Rolf Kuntz (4) escreveu: “Liquide-se o mundo velho de Westfália e se implante o mundo novo, o império de Donald Trump, clamam os seguidores do líder capitalista”. Paz de Westfália, conjunto de acordos assinados entre 1648 e 1659 que deu origem à “construção de um sistema de Estados soberanos e juridicamente iguais, consagrado em 1945 na Carta das Nações Unidas”.
Mesmo considerando que já há certo desânimo com relação “às vontades” de Trump (5), e que será muito difícil manter, por mais quatro anos, uma administração baseada “na força, no medo e na chantagem”, o debate público internacional ainda está sendo agendado por ele, posto que a oposição, em especial o Partido Democrata norte-americano, não sabe exatamente o que fazer. De qualquer forma, o confronto de Trump com parte do Partido Republicano e com os mais conservadores políticos, empresários e executivos daquele País deverá aumentar, posto que o conjunto de medidas adotadas por seu governo contem características nítidas e contrárias ao livre mercado e aos interesses empresariais.
Nas palavras do professor Sergio Fausto (“A maré montante da autocracia”, Estadão do último dia 6), “as transformações das políticas interna e externa dos Estados Unidos”, geradas por Donald Trump neste início de ano, principalmente agora com a política de tributação de quase todos os produtos importados pelo País, “terão graves consequências para a democracia no plano internacional” e provocará “a erosão deliberada dos pilares da democracia norte-americana” e com total abandono, pelos Estados Unidos, “da ordem liberal, cuja construção o país liderou após a Segunda Guerra Mundial”. Sergio Fausto vais mais adiante: Trump e “seus aliados se mexem para apoiar forças de extrema direita na Europa e na América Latina, valendo-se do governo americano e de grandes oligarcas, como Elon Musk”, numa perfeita “fusão entre poder político e econômico que ameaça a democracia e a economia de mercado nos Estados Unidos e em outros países”.
Há que se adicionar a tudo isso, o momento internacional atual, no qual passaram a ter “legitimidade” e protagonismo mundial governos autoritários e contrários aos princípios que norteiam os países ocidentais. Como escreveu o ex-professor da FEA-USP, Carlos Alberto Longo (Estadão dia 07 pp), diversos países (Hungria, Turquia e Arábia Saudita, por exemplo), “tendo à frente a China e a Rússia, cada um a seu modo”, têm líderes nacionalistas e culturas conservadoras, com escassa tolerância às minorias e à dissensão”, cujas aparências, concorde-se ou não, parecem “estar afinadas e receptivas às demandas do cidadão comum”.
E se a Rússia de Putin defende uma posição imperialista cada vez mais conservadora, totalmente distante dos principais valores ocidentais, digam-se democráticos, na qual “o homem não é um indivíduo livre, mas membro de uma comunidade à qual presta obediência”, nas palavras do professor de filosofia da UFRGS, Denis L. Rosenfield, a China de Xi Jinping, também com sua posição contrária aos valores ocidentais e democráticos, trabalha em oposição aos conceitos liberais, de livre mercado, de autodeterminação dos povos e dos direitos humanos.
Para o Brasil, os impactos são os mais diversos possíveis e a incerteza também predomina. Muitos comemoraram o ‘apenas’ 10%, posto que isso não deverá atrapalhar os negócios brasileiros com os EUA, enquanto outros, mais pessimistas, acreditam que haverá redução da taxa de crescimento do PIB e um forte processo de desindustrialização. Ignorando que o clima de concorrência mundial será muito mais ‘feroz’, muitos ainda acreditam que o Brasil terá muitas novas oportunidades. A conferir.
De qualquer forma, considerando a pequena participação que o País tem no comércio mundial (cerca de 1,5% do total), seja por oferecer produtos básicos – a maioria da pauta de exportações brasileiras é de ‘commodities’ – ou por ter baixa produtividade em seu processo produtivo, mais notadamente no trabalho, é fato que o Brasil tem pouco espaço para se movimentar (6) e encontra-se numa ‘encruzilhada’ entre EUA e China (7).
Entretanto, mesmo com todas as incertezas reinantes, o Brasil precisa ‘confirmar’, como aliás já o tem feito, estar ao lado da Democracia. E, cada vez mais, defendê-la. Na área econômica, através de uma diplomacia serena e eficaz, e com muita negociação, o recomendável é, como até agora foi possível, ‘manter os pés nos dois mercados’ e, na medida do possível, aproximar-se, via Mercosul, da União Europeia (8) que, queira ou não, também está à procura de novos parceiros. Nunca sem, paralelamente, investir em ciência, pesquisa, inovação, desenvolvimento tecnológico, sustentabilidade e aumento da produtividade. A melhoria do sistema político e o seu verdadeiro aperfeiçoamento seriam providências essenciais e indispensáveis. Mas aqui, concordando com o que pensa o cientista político Bolivar Lamounier (“Vemos uma luta por poder de dois populistas sem projeto” – Estadão de 07.04.25), há impedimentos profundos e que exigiriam, de toda a sociedade brasileira, um plano de convergência efetivo, tanto para o médio como para o longo prazo (9).
Uma observação: o mundo empresarial sabe que nos últimos trinta ou quarenta anos, a globalização propiciou o crescimento e o desenvolvimento da maioria das empresas do mundo ocidental. O sucesso e o lucro passaram a fazer parte do “dia a dia” da maioria das empresas e os benefícios obtidos foram percebidos em quase todo o mundo. Atualmente, assim como se questionam as providências relativas à proteção do meio ambiente, questionam-se os princípios da globalização e das sociedades democráticas, motivos mais do que suficientes para que os setores empresariais, de todos os segmentos produtivos, tomem posições firmes e concretas em suas defesas (Democracia, meio ambiente e globalização). Pode-se, inclusive, sugerir mudanças para melhoria e o aperfeiçoamento de cada uma delas, mas jamais negá-las como instituições que, inquestionavelmente, fizeram a humanidade avançar. Atribuída a Jack Welch, uma frase interessante: ”se por um acaso, as mudanças do lado externo das empresas forem mais rápidas que as do lado interno, o fim está próximo”.
A Democracia pode não estar correndo o perigo que acreditamos, mas é muito difícil saber o que fazer no atual momento, considerando que a crise é política, econômica, social e de valores. Não se pode ignorar que os valores morais e éticos, consagrados pela maioria da sociedade mundial, mais precisamente do mundo livre, estão sendo ignorados. Infelizmente, não só pelas ditaduras e/ou países totalitários, mas também por partes significativas das sociedades que constituem os países livres e democráticos.
Em resumo, se democratas defendem os direitos humanos, uma economia de mercado integrada (globalização), com forte presença do Estado no processo de controle e combate às desigualdades, um sistema partidário menos fragmentado, o multilateralismo, a sustentabilidade e a proteção do meio ambiente, além de um sistema de governo que privilegie a eficácia administrativa e a racionalidade nos gastos públicos, não há por que desistir da Democracia, mesmo com seus defeitos e instrumentos de baixa eficácia. Muito pelo contrário.
(1) “O enfraquecimento do Conselho de Segurança da ONU e do Tribunal Penal Internacional é indisfarçável. Igualmente inegável é o desprezo manifestado por Trump a organizações internacionais. Não há como encarar separadamente o desprezo de Trump a essas entidades e seu desdém às normas de convivência entre países”, escreveu Rolf Kuntz, jornalista do Estadão (“Tarifa até a pinguins afronta Paz de Westfália”) em artigo publicado dia 5 pp.
(2) Trump e o ‘Grande Salto para Trás”, Editorial do Jornal O Estado de S.Paulo de 05.04.25 – “Trump deu um golpe mortal na globalização que os EUA ajudaram a construir. As nações amigas do livre comércio perderam um grande aliado, mas só estarão desamparadas se não souberem se unir”. Numa canetada, o presidente dos EUA, Donald Trump, decretou o retorno do mundo ao século 19. Segundo Trump, os EUA se “libertaram” neste momento das nações que têm “saqueado, pilhado, estuprado e roubado” os americanos. Nada mais falso” (grifos meus). “Os EUA foram uma nação erguida por estrangeiros e, como todas as grandes nações da História, fizeram-se grandes fazendo negócios com outras nações. O isolacionismo não fará o país grande de novo, ao contrário. Mas, se os EUA renunciam às razões de sua grandeza, o resto do mundo não precisa seguir esse caminho”.
Os EUA, que dão as costas ao livre comércio, e a China, que o distorce, são grandes. Mas justamente um dos benefícios da globalização foi que a fatia das duas potências juntas no comércio global diminuiu nos últimos 20 anos. Se as nações amigas do livre mercado souberem reverter a fragmentação e cimentar blocos cada vez maiores baseados numa competição justa e aberta, têm uma chance de trazer os EUA de volta à razão e disciplinar o capitalismo de Estado chinês, para benefício de todos.
(3) “O futuro que passa ao largo dos EUA” foi o título do artigo de Thomas L. Friedman, jornalista do New York Times, cuja publicação se deu no último dia 5 no Estadão. ”Enquanto Trump impõe barreiras, a China busca transformar suas fábricas com os recursos da inteligência artificial para superar todas as manufaturas americanas.”
(4) “Tarifa até a pinguins afronta Paz de Westfália”, artigo de Rolf Kuntz (Estadão de 05.04.25). “Efeitos desastrosos da política trumpista foram logo identificados. Bilhões de dólares serão perdidos por economias exportadoras, mas também os EUA serão prejudicados. Indústrias americanas pagarão mais caro por matérias-primas e insumos, preços locais deverão subir e trabalhadores poderão ficar desempregados. Algumas empresas, como indicou Trump, talvez migrem para o território americano, mas transferências desse tipo são demoradas e caras.”
(5) “Trumpismo dá sinais de desgaste” – Estadão de 07.04.25 – Jornalista Oliver Stuenkel.
(6) “O Brasil espremido entre EUA e China”, editorial do Estadão do último dia 7: “Com baixa competitividade e pouca diversificação no comércio internacional, do qual participa com 1,5%, o Brasil ingressa numa nova ordem econômica mundial sem margem de manobra”.
(7) “Quando, em 2009, a China tornou-se o principal parceiro comercial do Brasil, interrompeu quase 80 anos de liderança absoluta dos EUA nessa posição. Desde então, a China se consolidou como nosso maior mercado, respondendo, sozinha, por quase um terço de todas as exportações brasileiras. Em 2023 foram US$ 104,3 bilhões; em 2024, US$ 94,4 bilhões. Também vem da China a maior parcela de produtos importados pelo Brasil: no ano passado foram US$ 63,6 bilhões, enquanto dos EUA vieram US$ 40,6 bilhões” (Editorial do Estadão de 07.04.25).
(8) Sergio Fausto: “O pesadelo de uma ordem global autocrática despertou a Europa da sua letargia. O fortalecimento da União Europeia é indispensável para reverter a maré montante da autocracia. O desafio do Velho Continente está em compatibilizar o aumento dos gastos em defesa e a adoção de políticas de competitividade, tais como as recomendadas pelo Relatório Draghi, com a preservação/atualização do Estado de bem-estar social”.
(9) Fatores de impedimento principais, segundo Bolívar Lamounier: 1) uma elite que detém metade da riqueza do País e não demonstra o menor interesse em compartir as responsabilidades da governabilidade; 2) uma classe média demasiado exígua e despolitizada, à qual falta ânimo até para conhecer seus próprios interesses; 3) uma economia aprisionada na “armadilha do baixo crescimento”; 4) ao contrário de outros momentos, não temos, atualmente, sequer indivíduos de alto nível intelectual, lúcidos e dispostos a compor um diagnóstico realista dos problemas a superar, e das respectivas alternativas, isso tanto no terreno econômico como no político e no cultural.










