Cegueira na cadeia de suprimentos: Quando tudo funciona, mas nada é visto

Em seu novo artigo para o Portal Logweb, o colunista Elcio Grassia aborda um tema crucial para a gestão moderna: a falta de visibilidade nas operações logísticas. O autor alerta que muitas empresas vivem uma “cegueira operacional”, acreditando que tudo está sob controle apenas porque não enfrentam crises aparentes. No entanto, essa ilusão de eficiência pode esconder falhas graves de rastreabilidade e integração. Grassia mostra que a verdadeira maturidade da cadeia de suprimentos está na capacidade de enxergar e reagir rapidamente — algo que depende tanto de tecnologia quanto de cultura organizacional.

É comum que empresas, com suas cadeias de suprimentos aparentemente funcionando bem, operem em modo automático. Sistemas legados, processos rotineiros e a ausência de problemas visíveis muitas vezes mascaram fragilidades críticas. A eficiência aparente esconde o fato de que, em muitos casos, a visibilidade da cadeia de suprimentos é limitada, desconectada e fragmentada. É a chamada “cegueira operacional”.

Imagine uma cadeia de suprimentos no setor alimentício. Tudo parece estar sob controle: fornecedores entregam dentro do prazo, estoques estão abastecidos, pedidos chegam aos clientes. Até que um alerta sanitário exige o recolhimento urgente de um lote de alimentos contaminados. Nesse momento, a capacidade de rastrear o produto desde sua origem até o ponto de venda deixa de ser uma questão de eficiência — e passa a ser uma questão de sobrevivência.

Cegueira na cadeia de suprimentos: Quando tudo funciona, mas nada é visto

A ilusão de controle

O grande problema está na confiança excessiva no status quo. A falta de eventos críticos ao longo do tempo tende a reforçar uma cultura de complacência. As empresas não investem em novos sistemas de rastreamento, não revisam seus processos documentais e negligenciam atualizações em tecnologias de controle de qualidade e rastreabilidade. Afinal, “nunca deu problema”.

Porém, quando uma crise acontece — como uma contaminação alimentar ou falha sistêmica em fornecimento — a fragilidade se revela. Muitas organizações percebem, tardiamente, que não possuem uma estrutura lógica e integrada que permita reconstruir o caminho do produto de forma rápida e precisa. O tempo para reagir é curto e o impacto reputacional e financeiro pode ser imenso.

Rastreabilidade: Muito além do arquivo

Rastreabilidade na cadeia de suprimentos é a capacidade de identificar e seguir a movimentação de produtos através de todas as etapas — desde o insumo até o consumidor final. No setor alimentício, isso se aplica desde o plantio, passando pelo processamento, transporte, armazenagem e venda. Não basta armazenar documentos. É preciso ter um sistema confiável que permita consultar, relacionar e rastrear eventos e transações em tempo real.

Esse nível de rastreabilidade exige:

– Integração de sistemas entre parceiros: fornecedores, Operadores Logísticos, distribuidores e varejistas precisam operar em plataformas compatíveis.

– Padronização de dados: códigos, lotes, datas, locais e responsáveis devem estar uniformemente registrados.

– Visibilidade centralizada: acesso fácil e rápido aos dados por parte dos gestores e, quando necessário, das autoridades reguladoras.

A exigência reguladora: Tempo é essencial

Em casos de risco à saúde pública, muitas legislações nacionais determinam que empresas comuniquem imediatamente as autoridades ao detectarem irregularidades e apresentem, em até 48 horas, um relatório inicial com detalhes do lote afetado, sua distribuição e ações corretivas.

O prazo é curto. A resposta precisa ser precisa. Isso não é apenas uma exigência burocrática — é um teste da maturidade da cadeia de suprimentos. Empresas que operam com visibilidade real conseguem responder com confiança, detalhando quais unidades foram produzidas, para onde foram enviadas e quem as recebeu. Já aquelas que operam no escuro correm o risco de atrasos, multas e até suspensão de atividades.

Riscos da cegueira na cadeia

A cegueira logística traz implicações além do não atendimento a regulamentações. Entre os principais riscos, destacam-se:

1. Recall ineficaz: Sem rastreabilidade precisa, empresas são obrigadas a recolher lotes inteiros, mesmo que apenas uma fração esteja comprometida. Isso aumenta custos e desperdícios.

2. Exposição legal e reputacional: A dificuldade em demonstrar controle sobre o processo produtivo pode acarretar sanções e perda de confiança do mercado.

3. Inviabilidade de melhoria contínua: Sem dados confiáveis, não é possível identificar gargalos, otimizar processos ou prever falhas.

4. Dependência de pessoas e processos manuais: Informações descentralizadas, registradas em papéis ou planilhas, tornam a cadeia vulnerável a erros humanos e lentidão.

Soluções para superar a cegueira

Vencer essa cegueira exige mais do que tecnologia — requer mudança de cultura. Empresas devem abandonar a visão de que “não investir em rastreabilidade é economia” e passar a vê-la como um pilar da resiliência empresarial. Algumas medidas importantes incluem:

– Digitalização da cadeia: Utilização de sistemas de ERP, WMS, TMS, RFID e blockchain para integrar e automatizar fluxos de dados.

– Governança da informação: Estabelecimento de políticas claras sobre coleta, armazenamento e análise de dados operacionais.

– Educação e capacitação: Treinamento constante das equipes, desde operadores até executivos, sobre a importância da visibilidade e rastreabilidade.

– Auditorias e testes de prontidão: Simulações de recall e auditorias internas ajudam a identificar falhas antes que elas virem crises.

A visão estratégica da visibilidade

Empresas líderes já entenderam que visibilidade não é apenas defensiva — é um ativo estratégico. Cadeias de suprimentos com alta visibilidade operam com mais eficiência, melhor controle de custos e maior capacidade de resposta ao mercado.

Além disso, a rastreabilidade eficaz permite gerar valor para o consumidor final, cada vez mais atento à origem, qualidade e segurança dos produtos. Marcas que demonstram transparência ganham vantagem competitiva em mercados exigentes.

Conclusão

A cadeia de suprimentos pode estar operando, os pedidos sendo entregues e os sistemas funcionando. Mas isso não significa que tudo está sob controle. A cegueira — esse estado de falsa segurança — é um dos maiores riscos para a sustentabilidade e resiliência empresarial.

Enxergar bem, na gestão da cadeia de suprimentos, significa saber exatamente o que está acontecendo, onde, como e por quê. Significa ter dados, controle e capacidade de resposta. Em um mundo onde a incerteza é a única constante, a visibilidade deixou de ser uma opção. Ela é, hoje, uma necessidade.

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Elcio Grassia

Elcio Grassia

Sócio-Fundador e CEO da Nazar Systems, plataforma SaaS para digitalização da Cadeia de Abastecimento do Varejo Alimentar. Vice-Presidente de Programas do CSCMP Roundtable Brasil. Vice-Presidente da BSCA (Blockchain Supply Chain Association para o leste da América do Sul (Argentina, Brasil, Paraguay e Uruguay). Sócio-Consultor da Integrare Consulting, com foco em Logística e gestão da Cadeia de Abastecimento, tendo desenvolvido projetos para clientes como Ambev, Aqua Capital Partners, Banco Interamericano de Desenvolvimento, Burguer King, Cacau Show, Carapreta Carnes Nobres, Comfrio, Consórcio Rio Energia, FEMSA, FGV Projetos, Global Environment Fund, WalMart / Intelligrated, Mendes Junior, Novus, Radhakrishna Foodland, Secretaria de Logística do Estado de São Paulo, The Fifties e Vale, entre outros. Tem 45 anos de experiência em Logística, Supply Chain, Operações, Gerência Geral e Desenvolvimento de Negócios em empresas como Havi Global Solutions, McDonald’s Brasil e América Latina, Martin-Brower Brasil e Nestle Brasil. “Board Emeritus”, ex-Channel Partner e ex-membro do Global Research Committee da ASCM – Association for Supply Chain Management.

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