Diante do impasse Brasil e EUA, quais caminhos restam ao Brasil?

O artigo do colunista do Portal Logweb Paulo Roberto Guedes oferece uma análise crítica e aprofundada das tensões recentes entre Brasil e Estados Unidos, especialmente sob o governo Trump. Considerando que conflitos vão além do comércio, refletindo disputas geopolíticas e ideológicas, o autor propõe que o Brasil reforce sua soberania, diversifique parcerias internacionais, valorize a democracia e invista em educação e tecnologia. Ao destacar contradições da política externa americana, o texto sugere que, hoje, o Brasil defende princípios democráticos com mais coerência do que os EUA.

Em meu último artigo, publicado aqui mesmo no site da Logweb (“Brasil x EUA: impossível fazer qualquer prognóstico a respeito, mas é preciso agir”), dia 28 pp, comentei o fato de que os ataques feitos por Donald Trump não só ao Brasil, mas ao mundo todo, tinham menos a ver com aspectos simplesmente econômicos e/ou comerciais, propriamente ditos, mas muito mais com fatores geopolíticos, posto que, ainda segundo minha percepção, “as atitudes do presidente americano são reações de quem sente (ou supõe) que terá, na medida em que o mundo se torna cada vez mais multipolar, dificuldades econômicas e geopolíticas cada vez maiores”.

Escrevi, também, que independentemente dos motivos, “o Brasil precisará reagir”. Em seguida citei algumas providências que considerei urgentes, principalmente para o curto prazo (1).

Para finalizar, enfatizei que o Brasil não poderia ceder às pressões e, principalmente, se submeter às ameaças que se fazem com relação à soberania do País. De lá para cá, muita coisa mudou e o “tarifaço” prometido por Trump, embora amenizado, foi mantido, levando-me a uma nova reflexão: o que resta ao Brasil para amenizar os impactos que, claramente, não serão bons?

Diante do impasse Brasil e EUA, quais caminhos restam ao Brasil?

Com base no que tenho ouvido e lido, principalmente de especialistas em geopolítica, e considerando o momento atual do Brasil, procurei descrever algumas ‘providências’, todas elas discutíveis, tais como:

– Estabelecer políticas claras de ‘abertura’ ao mercado internacional, com redução concreta das barreiras comerciais e burocráticas existentes, de forma a buscar novos mercados, tanto para a venda dos produtos que deverão acumular estoques acima do normal em face do tarifaço de Trump, como, eventualmente, para a busca de novos fornecedores.

– Manter-se firme na defesa de sua soberania e não permitir quaisquer interferências nas decisões e providências tomadas pelas instituições brasileiras, legal e legitimamente constituídas. Principalmente se considerarmos que Trump, ao falsear a verdade e desvirtuar os valores democráticos já consagrados, caracteriza o Brasil como uma ditadura (2).

– Trabalhar na defesa e no fortalecimento do multilateralismo.

– Retomar, através da diplomacia e processos inteligentes de negociações, nossa antiga posição que, há mais de duzentos anos, sempre nos caracterizaram, respeitando-se o ‘não alinhamento automático’, como um País ‘amigo’ dos EUA.

– Estabelecer regras e políticas claras de como deverão ser explorados os recursos naturais brasileiros, notadamente aqueles considerados estratégicos para a transição energética e outros direcionados às novas tecnologias. Ressalte-se que, conforme informações da Agência Nacional de Mineração, já foram aprovados, no Brasil, investimentos em “terras raras” equivalentes a US$ 2,17 bilhões (223 empresas nacionais e estrangeiras), o que poderá levar o País a um protagonismo ainda maior nesse setor.

– Estabelecer regras, aqui no Brasil, para a construção e o funcionamento dos famosos ‘data centers’, bem como das “big techs”, de tal forma que, além de preservar o direito de opinião e não permitir a censura, faça com que elas, as ‘big techs’, se responsabilizem pelo que publicam ou ‘deixam’ publicar.

– Priorizar as discussões que tratam da qualidade de ensino, manter e fortalecer a independência das universidades e estimular e desenvolver programas que fortaleçam a educação (3), em todos os níveis e idades, a ciência e a pesquisa, diferentemente do que se propõem as políticas de Trump para os EUA (4), cujo único objetivo, além de ‘acabar’ com o seu ministério da educação, é impor sua medíocre visão de mundo.

– Ficar atento às possibilidades de maiores pressões do Trump, como, por exemplo, a de realizar ações militares em qualquer parte do planeta para combater o tráfico de drogas, e com esse argumento invadir, principalmente, países vizinhos.

Mesmo não tendo esgotado o assunto (o que pode o Brasil fazer?), e relembrando algumas leituras menos recentes, cheguei à conclusão que o Brasil precisa fazer muito mais.

Lembrei-me, por exemplo, do que escreveu o ex-diplomata norte-americano Henry Kissinger em seu livro “Ordem Mundial” (Objetiva, 2014), ao titular o capítulo 8 como “Os EUA: superpotência ambivalente”. E como referências, Kissinger listou as ambivalências consideradas como mais importantes, força e diplomacia, realismo e idealismo, poder e legitimidade.

Ao considerar que os EUA saíram como vitoriosos ao fim da Guerra Fria, entre outras considerações, resumiu Kissinger: “os EUA têm vasculhado sua alma em busca de respostas para o valor moral de seus esforços num grau para o qual seria difícil encontrar paralelos históricos”. “Ou os objetivos norte-americanos se mostraram inatingíveis ou o país não seguiu uma estratégia compatível com a realização desses objetivos”. E daí, outra dúvida: tudo isso foi “fruto das deficiências morais e intelectuais de seus líderes e/ou da incapacidade de resolver essas ambivalências”, posto que todas fazem sentido?

Ora, sabe-se que os norte-americanos sempre quiseram praticar uma política externa que, além de eficaz, refletisse os valores democráticos adotados ao longo do tempo. Mas, aí as discussões se intensificaram, posto que os paradigmas de sua ambivalência ainda se mostram presentes. Parece claro, portanto, que caso os EUA não possam dar respostas a isso, eles não serão capazes de dar respostas satisfatórias de como deveria ser a política externa do País.

Ainda de acordo com o livro citado, Kissinger comenta um discurso importante proferido pelo ex-presidente Clinton, ao enfatizar que os EUA reafirmaram o conceito de que a política externa norte-americana está baseada na “ampliação”, e não na “contenção” (Clinton: “nosso propósito primeiro deve ser o de expandir e fortalecer a comunidade mundial das democracias baseadas em economias de mercado”), de tal forma que em um mundo no qual se estabelecem democracias fortes, umas cooperariam com as outras e viveriam em paz.

Infelizmente, como se sabe, as Democracias, assim como as economias de mercado, têm falhado nas soluções de muitos problemas que afetam, mais diretamente, as populações pobres do mundo. A Democracia, no entanto, embora ainda seja o melhor regime político, sofre questionamentos cada vez maiores.

Vale lembra, também, que a China, País que mais rivaliza com os EUA atualmente, não tem qualquer interesse na disseminação desse modelo de governo (5).

Com base no que disse Clinton, “First América” reflete um conceito de “contenção” ou “ampliação”? De inclusão ou exclusão? A favor de mais Democracia ou direcionado a uma Autocracia? A perseguição a imigrantes, às universidades e aos museus, aos jornalistas e aos escritórios de advocacia, a imposição de tarifas impraticáveis sob o ponto de vista comercial e totalmente desastrosas no que diz respeito ao comércio internacional e o desejo de ‘anexar’ países e regiões ao ‘império norte-americano’ são exemplos de quem está se preocupando com a Democracia e os direitos humanos, por exemplo?

No atual momento, quem mais defende a Democracia, o Brasil ou os EUA? Além do que escrevi no parágrafo anterior, projetos de exclusão de inimigos, retirada de direitos fundamentais do cidadão, ajuda aos mais ricos, descarte dos temas ligados ao meio ambiente, falhas claras de justiça (inclusive por não ter barrado o Sr. Trump bem antes), por exemplo, são políticas adotadas pelo Brasil ou pelo EUA?

Parece-me claro que o Brasil, embora possa ser acusado por muitos outros motivos, não é uma ditadura, como quer indicar um recente relatório produzido nos EUA. Não se constata quaisquer tipos de repressão que poderiam caracterizá-lo como um país autocrático. Há total liberdade de expressão, não há perseguição política, as eleições brasileiras são livres, o sistema eleitoral e as urnas eletrônicas refletem, de fato, o desejo da população, a imprensa, as universidades e os espetáculos artísticos trabalham livres e sem pressões ou censura e as instituições brasileiras, legítima e legalmente constituídas, funcionam em sua plenitude. Principalmente o nosso poder Judiciário, mais especificamente o Supremo Tribunal Federal (6).

Vale, novamente, relembrarmos Kissinger que deixa muito claro o fato de que “no mundo da geopolítica, a ordem estabelecida e proclamada como universal pelos países ocidentais se encontra num momento crítico (grifos meus) e, embora “os remédios para seus problemas são compreendidos globalmente”, os “conceitos como democracia, direitos humanos e direito internacional recebem interpretações muito divergentes.” Qual será, portanto, o entendimento de Trump a respeito?

Mas, se “a cura para os males da democracia é mais democracia”, como especificado em 1970 (Democratic National Committee), as normas da democracia precisam ser totalmente inclusivas e estendidas para uma sociedade cada vez mais diversificada, e não pela exclusão, social ou racial.

Aliás é o que defendem Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (“Como as democracias morrem”, Zahar, 2018), ao escreverem que “hoje é preciso fazer as normas funcionarem numa era de igualdade racial e de diversidade étnica sem precedentes. Poucas sociedades conseguiram ser multirraciais e genuinamente democráticas”. E, com relação aos EUA, finalizam: “esse é o nosso desafio”.

Fernando Gabeira, em seu último artigo (“Muitas crises e alguma oportunidade”), publicado no Estadão dia 15 pp, com relação ao Brasil deixa claro: “o dado novo é a entrada de um ator muito mais forte que a extrema direita”. Os EUA de Donald Trump que, como se sabe, destrói o “sistema de freios, pesos e contrapesos” e sabota o poder judiciário, principalmente quando se utiliza de leis totalmente autoritárias (7).

O Brasil está sendo punido pelos EUA por ser, atualmente, muito mais democrático que o próprio EUA. E mesmo sendo atacado injustificadamente, inclusive internamente por parte da extrema direita brasileira, o Brasil precisa sair da polarização que tem caracterizado nossa política dos últimos anos e, de fato, visando principalmente o longo prazo, desenvolver seu “Projeto de País”, que privilegie, sem dúvida, o regime democrático. Diferentemente desse praticado atualmente pelos EUA, mas possivelmente alterado e adaptado, considerando as novas circunstâncias e a nova realidade, mas democrático.

(1) “Surge, como fundamental, investir muito em suas relações diplomáticas, criar alianças táticas e evitar que se construam novas barreiras comerciais com o exterior, incluindo-se, e principalmente, com os países parceiros, apoiar todos os agentes de sua economia, mais notadamente aqueles setores diretamente afetados pelos aumentos das taxas de importações impostos pelos EUA, desenvolver e estabelecer um conjunto de políticas que incentivem a busca por novos mercados, diminuam nossa dependência junto às ‘big techs’ e acelerem alternativas estruturais. E, sem dúvida, ‘negociar à exaustão’ com os norte-americanos, buscando um retorno, mesmo que parcial, à normalidade comercial e ao reestabelecimento do excepcional relacionamento que caracterizou, por mais de duzentos anos, o convívio entre os dois países. E, caso necessário, mesmo considerando que serão processos muito lentos, acionar a justiça nos EUA e nos diversos organismos internacionais existentes. Como já li em alguns estudos, embora pareça um ‘sacrilégio’ para muitos, o Brasil precisará estabelecer um plano mais diversificado e estratégico para ter novos parceiros. Seja nas áreas comercial, financeira, tecnológica e militar, pois independentemente dos resultados alcançados no próximo dia primeiro, a incerteza e a desconfiança entre os dois países já estão instaladas, são verdadeiras e, como novos fatos, precisam de agora por diante serem consideradas”.

(2) “O mais recente relatório de direitos humanos do Departamento de Estado dos EUA revela mais sobre a política externa do presidente Donald Trump do que sobre as realidades que alega documentar. Ao inverter prioridades, encurtar investigações e hipertrofiar recortes convenientes, o texto se transforma num instrumento de retaliação política – e não numa avaliação séria e universal dos direitos humanos. É um manual de como subverter valores que, por décadas, definiram a imagem internacional dos EUA: a defesa da liberdade, do Estado de Direito e da democracia” (“Trump desmoraliza os direitos humanos”, editorial do Estadão do último dia 15).

“O relatório, nesta versão trumpista, é um retrato de como valores historicamente americanos podem ser distorcidos até a desfiguração total, convertendo-se em instrumentos de coerção seletiva. É mais um passo firme rumo a um mundo menos regido por regras e mais confortável para os fortes – e, paradoxalmente, mais hostil para as próprias democracias que os EUA um dia ajudaram a proteger” (“Trump desmoraliza os direitos humanos”, editorial do Estadão do último dia 15).

(3) “No Brasil, a Constituição estabelece que União, Estados e municípios organizem em regime de colaboração seus sistemas de ensino. A lei estabelece prioridades, sendo os municípios responsáveis principalmente pela educação infantil e o ensino fundamental, os Estados pelo ensino médio (mas, também, com atuação no fundamental) e a União assumindo, na educação básica, função redistributiva e supletiva, para equalizar oportunidades educacionais e garantir um padrão mínimo de qualidade por meio de assistência técnica e financeira”. “Durante o processo de redemocratização, porém, amadurecemos no relacionamento entre União e os demais entes federativos. Prova disso são os programas de transporte, alimentação e livros didáticos, apenas para citar alguns, que passaram a funcionar a partir de critérios técnicos e pactuados, diminuindo significativamente o grau de discricionariedade na distribuição de verbas”. Assim como é o exemplo da Fundeb: “principal fundo de financiamento da educação, com caráter fortemente redistributivo, fruto de pactuação no Congresso entre União, Estados e municípios” (“Trumpismos perversos na educação”, artigo publicado pelo professor associado da Fundação Dom Cabral, Ricardo Henriques, dia 15.08.25)

(4) “Enquanto o noticiário analisava os efeitos do tarifaço de Trump, o presidente americano viabilizava outro passo em sua agenda de ataque às instituições educacionais, a partir de uma decisão da Suprema Corte autorizando a demissão de quase 1.400 profissionais do Departamento de Educação. Na prática, isso permite cumprir sua promessa de acabar com o órgão, similar ao nosso Ministério da Educação (MEC). Pode parecer uma decisão com efeitos apenas sobre os EUA, mas, como a tendência da extrema direita no Brasil é copiar seus pares americanos, é importante analisar as consequências no campo educacional” (“Trumpismos perversos na educação”, artigo publicado no Estadão de 15.08.25, pelo professor associado da Fundação Dom Cabral, Ricardo Henriques). Aliás, o corte de verbas da Universidade de Harvard ou a ‘orientação de funcionamento dos museus”, nada mais são do que exemplos nítidos dos ‘castigos’ que virão para aqueles que não aceitam suas ‘ordens’.

(5) “Ordem Mundial” – Henry Kissinger, Objetiva, 2014. Capítulo 6: “Rumo a uma ordem asiática: confronto ou parceria?”

“Tanto a China como os Estados Unidos são pilares indispensáveis da ordem mundial”. Como se pode observar ao longo do tempo, os dois países “têm dado mostra de uma atitude ambivalente em relação ao sistema internacional do qual agora são peças fundamentais, afirmando seu compromisso com o sistema, ainda que mantenham restrições quanto a aspectos de sua estrutura”.

Outra observação importante é quanto ao fato de que “a China rejeita a noção de que a ordem internacional seja fomentada pela disseminação da democracia liberal” e, mais do que isso, “a de que a percepção dos direitos humanos venha a ser implantada pela ação internacional”. Os EUA, por outro lado, jamais “poderão abandonar completamente esses princípios”.

O fato, inconteste, é de que a China “reconquistou a estatura pela qual era conhecida durante séculos”. A questão atual é “saber como ela vai lidar com a busca contemporânea por uma ordem mundial, especialmente em suas relações com os EUA”.

(6) “Ditadura do Judiciário coisa nenhuma”, artigo escrito pelo advogado e professor de direito da FGV-SP Oscar Vilhena, e por Sergio Fausto, diretor-geral da Fundação FHC, publicado dia 17.-08.25.

(7) “Freios ao poder sem limites”, editorial do Estadão do último dia 17.

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Paulo Roberto Guedes

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Consultor Empresarial

 

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